— Nem eu — responde McCauley.
— Eu também não quero muito (fazer outra coisa) — acrescenta o policial.
— Nem eu — concorda o ladrão.
O encontro teve como cenário o restaurante Kate Mantilini — aliás, Mann não rodou nada em estúdio, só usou locações, o que, com o perdão do trocadilho, intensifica o calor do filme. Antes de fechar as portas, em 2014, o estabelecimento tratou de capitalizar a mitologia de Fogo Contra Fogo. Mantinha acima da porta um em néon com o título em inglês, pendurou na parede um grande pôster de Pacino e De Niro na cena e permitia aos clientes solicitarem a mesma mesa ocupada pelos personagens, a de número 71, que ou a ser conhecida como The Table (A Mesa).
O jogo de gato e rato entre Hanna e McCauley se desenrola ao longo de quase três horas (são 170 minutos de duração) que am voando graças ao talento e ao carisma dos dois astros e às habilidades como diretor e roteirista de Mann — que já havia contado a mesma história no telefilme Os Tiras de Los Angeles (1989). Realizador de Profissão: Ladrão (1981), Caçador de Assassinos (1986), Colateral (2004), Miami Vice (2006) e Inimigos Públicos (2009), ele é um esteta e um filósofo dos filmes policiais. Em Fogo Contra Fogo, intercala intensas e orquestradas cenas de ação — repare no longo (10 minutos!) e selvagem tiroteio pelas ruas de Los Angeles na saída de um assalto a banco, cuja crueza é realçada pela captação de som ao vivo, via microfones espalhados pelo set, em vez do tradicional processo de "dublagem" na pós-produção —, com subtramas que, em vez de desviar nossa atenção, ajudam a encorpar a atmosfera de desamparo e ansiedade.
A enteada adolescente de Hanna (o segundo papel na carreira de Natalie Portman) sofre porque seu pai biológico nunca aparece — é tão ausente que nem o espectador o vê. Um ex-presidiário (Dennis Haysbert) fica orgulhoso ao arranjar emprego em uma lanchonete, até descobrir que o patrão é abusivo. Integrante da quadrilha de McCauley, Chris Shiherlis (Val Kilmer) vê seu vício em apostas fazer desmoronar o relacionamento com Charlene (Ashley Judd), mãe de seu filho.
A Portman, Haysbert, Kilmer e Judd, somam-se Jon Voight, Tom Sizemore, Diane Venora, William Fichtner, Danny Trejo, Kevin Gage... Todas as peças são importantes no tabuleiro de Fogo Contra Fogo, que não foi lembrado nas premiações, mas cuja influência extrapola o âmbito cinematográfico (vide o game Grand Theft Auto, que prestou tributo nas edições de 2001, 2008 e 2013). Se, por um lado, há relatos de roubos na África do Sul, na Colômbia, na Dinamarca, na Noruega e na própria Los Angeles que teriam sido inspirados pelo filme, por outro consta que a cena em que o personagem de Val Kilmer atira em múltiplas direções e recarrega rapidamente sua arma teria sido usada como exemplar em treinamento de fuzileiros navais dos EUA.
No cinema, a herança de Fogo Contra Fogo pode ser observada em títulos como Irresistível Paixão (1998), de Steven Soderbergh — o bate-papo em um bar de hotel entre o ladrão vivido por George Clooney e a policial federal encarnada por Jennifer Lopez emula a de McCauley e Hanna —, Covil de Ladrões (2018), de Christian Gudegast, e As Viúvas (2018), de Steve McQueen. Edgar Wright, o diretor de Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, 2017) já declarou que Fogo Contra Fogo "é, obviamente, um avô dos filmes de assalto". Um parente bem próximo é Atração Perigosa (2010), de Ben Affleck. E um filme assumidamente apaixonado é Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008).
A propósito, o cineasta Christopher Nolan mediou um sobre Fogo Contra Fogo com Michael Mann, Robert De Niro e Al Pacino realizado em 2016 e incluído nos extras da edição definitiva em Blu-ray lançada no ano seguinte. A escalação de Willian Fichtner para o elenco é uma das citações presentes nessa sombria aventura do Homem-Morcego, que retoma a fotografia fria e azulada, o peso da cidade, o caráter obsessivo dos personagens e, claro, um mirabolante assalto a banco por uma quadrilha mascarada. A maior homenagem não poderia ser outra: a cena de Pacino e De Niro no restaurante é referenciada no interrogatório do Batman com o Coringa. Tanto no posicionamento da câmera e na edição do diálogo (plano e contraplano, plano e contraplano) quanto no teor da conversa, em que o vilão diz ao herói que eles são duas caras da mesma moeda ("Você me completa!", diz o postumamente oscarizado Heath Ledger).
Depois de Fogo Contra Fogo, Robert De Niro, hoje com 78 anos, e Al Pacino, 82, trabalharam juntos mais duas vezes. Primeiro, no sofrível As Duas Faces da Lei (2008), de John Avnet, no qual estão lado a lado. Interpretam detetives de Nova York parceiros há mais de 30 anos, conhecidos como Turk (De Niro) e Rooter (Al Pacino). Eles investigam homicídios cometidos por um serial killer, que elimina criminosos impunes e deixa como pista poemas justificando por que estes mereceram ser justiçados à bala. O enredo é por demais manjado, ainda que confuso, e os cacoetes visuais e narrativos acabam atraindo mais atenção do que os dois atores. O filme está disponível no Amazon Prime Video.
A segunda colaboração foi bem mais robusta: O Irlandês (2019), que disputou 10 Oscar, incluindo melhor filme e direção (mas não ganhou nenhum). Nesta espécie de parque temático de Martin Scorsese, De Niro — em seu nono longa-metragem com o cineasta de Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) — encarna Frank Sheeran, um assassino da máfia. Seu personagem tem um misto de brutalidade e fragilidade, um olho para Deus, o outro para o Diabo; seu sofrimento é quase silencioso, e sua violência chega a ser discreta. O ator merecia concorrer aos principais troféus de melhor ator, mas não emplacou nenhuma indicação. Aliás, depois de Cabo do Medo (1991) De Niro só voltou à festa do Oscar como concorrente ao prêmio de coadjuvante por O Lado Bom da Vida (2012).
Sheeran vai se envolver com chefões como Russell Bufalino e Joseph "Crazy Joe" Gallo; vai testemunhar a frustração dos mafiosos diante da revolução cubana liderada por Fidel Castro (que acabou com os lucrativos cassinos); vai assistir à ascensão e queda do clã Kennedy (John, o presidente, e Robert, o procurador-geral, ambos supostamente assassinados por traírem a instituição criminosa); e vai, principalmente, trabalhar como capanga de Jimmy Hoffa, que comandou o bilionário sindicato dos transportadores de carga americanos entre 1957 e 1971 e que, quatro anos depois, quando tentava retomar seu poder, desapareceu, sob circunstâncias investigadas à exaustão mas nunca esclarecidas.
O papel de Hoffa é interpretado por Pacino, em sua estreia sob o comando de Scorsese. Ou melhor: Al Pacino interpreta Al Pacino no papel de Jimmy Hoffa. Com suas tiradas cômicas e suas explosões um tanto previsíveis, ele tenta aproveitar cada instante para roubar a cena. Mas é quando reduz um pouco a intensidade que ele nos faz lembrar do grande ator que um dia já foi, antes de se assumir como uma caricatura de si próprio. Não à toa, acabou recebendo uma indicação ao Oscar (a primeira desde Perfume de Mulher), ao Bafta e ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante. O Irlandês está em cartaz na Netflix.