
Foi numa quinta-feira, 20 de maio de 1875, que 13 pessoas das famílias de Stefano Crippa (1847-1927), Tommaso Radaelli (1834-1921) e Luigi Sperafico (1836-1907) chegaram à região de Nova Milano, distrito de Farroupilha, na Serra, para fazer de um barracão sua moradia quatro anos seguintes. Os imigrantes concluíram uma travessia que se iniciou na Itália, de onde cerca de 60 famílias saíram da região da Lombardia com o sonho de sair da pobreza e ter uma vida melhor na América, estimuladas por um programa de colonização do governo imperial brasileiro. A chegada do trio marca o início da imigração italiana no Rio Grande do Sul, que neste ano celebra o seu sesquicentenário.
No local onde tudo começou, a memória dos pioneiros segue viva e tem sido preservada por descendentes como Beatriz Elvira Bergamo Flach, 75, bisneta de Stefano. No casarão em que o italiano manteve um armazém de secos e molhados, que nas décadas seguintes seria istrado por diferentes gerações da família, o Acervo da Bea é um dos mais instigantes museus da imigração na Serra, pela miscelânea de itens que transportam o visitante até os primeiros 50 anos da saga italiana no Estado.
Além de turmas escolares de Farroupilha e da região, assinam o caderno de visitas, exposto no amplo balcão de madeira remanescente da construção original, de 1884, turistas de diversas partes do Brasil e também italianos, sendo muitos deles oriundos da região do Vêneto, de onde vieram a maioria dos emigrados que se instalaram na Serra (cerca de 97%).

Memória no sangue
Entre as centenas de objetos expostos, o item que Beatriz diz guardar e exibir com mais carinho é um poncho de tecido que Stefano usava sempre que voltava a Nova Milano a cavalo, quando já morava na localidade de Linha Amizade, também em Farroupilha. A peça traz à memória da descendente histórias que o seu avô, Pedro Bergamo, contava sobre o patriarca da família Crippa:
— Quando meu bisavô (Stefano) se mudou e deixou o armazém para a filha e o genro, ele voltava toda semana a cavalo para assistir à missa e visitar a família. O que contam é que ele não apeava do cavalo até que os netos fossem recebê-lo. E ele adorava contar a eles histórias da viagem para o Brasil, como tinha sido difícil, da falta de comida, das muitas pessoas que morreram no navio.
Sendo ela mesma parte da história que conta com entusiasmo para cada pessoa que entra pela porta do antigo casarão, Beatriz exalta o legado iniciado pelo seu bisavô e pelos dois amigos que desbravaram um caminho que, nos anos seguintes, seria o mesmo feito por cerca de 80 mil italianos, no maior movimento migratório da história do Rio Grande do Sul:
— É muito interessante pensar na coragem que ele e outros imigrantes tiveram para vir, sem nada, para um lugar onde também não tinha nada além de uma promessa. A gente sente orgulho, porque essa memória também está no nosso sangue — conta Beatriz.
A religiosidade, o espírito comunitário, o trabalho e a gastronomia são alguns dos pilares centrais deste legado da imigração italiana.
Eventos valorizam história nas comunidades

Nas últimas duas semanas, entre os dias 9 e 18, Nova Milano sediou na praça central o 21º Encontro de Tradições Italianas (Entrai). Trineta do italiano Luigi Sperafico, Lurdes Sperafico, 80, considera que foi a partir da criação do Entrai que a memória dos primeiros imigrantes ou a ser valorizada, situação que a professora aposentada vê com um misto de emoções:
— Ao mesmo tempo em que a gente se sente feliz por eles terem sido reconhecidos como pioneiros, bate um sentimento de saudade daqueles que já se foram sem assistir a essa história ser valorizada como é hoje. Principalmente meu avô, Elígio, que adorava uma festa (risos).
Em uma edição recente do Entrai, membros das três famílias – Crippa, Sperafico e Radaelli – foram convidados a desfilar com camisetas identificadas, nas cores da bandeira da Itália. Foi com a camiseta branca que coube aos Sperafico após sorteio que Lurdes recebeu a reportagem em sua casa na localidade de São Miguel, próximo a Nova Milano, onde os familiares vivem principalmente da agricultura, produzindo laranjas e outras frutas apesar do terreno bastante acidentado que possuem, e que foi castigado pela enchente de maio do ano ado. Para a octogenária, superar desafios está no DNA da família:
– Não apenas minha família, mas todos os imigrantes deixaram a Itália porque não queriam mais viver de migalhas dos patrões. Aqui aram muita dificuldade, mas finalmente se tornaram os seus próprios patrões.
Em 2016, atendendo a uma antiga reivindicação da comunidade de Nova Milano, a prefeitura de Farroupilha revitalizou o Parque da Imigração Italiana, onde em 1975 foi erguido um monumento comemorativo pelo centenário da imigração. A ocasião também marcou o descerramento de placas em bronze com réplicas dos aportes de Luigi, Stefano e Tommaso.
Curiosidades
- As primeiras levas de imigrantes italianos que vieram à Serra gaúcha começaram a sair do Porto de Gênova em janeiro de 1875. Grande parte dos 80 mil italianos que chegaram ao Rio Grande do Sul trazia a família junto – 80% dos homens e 100% das mulheres estavam casados. Havia viúvas, claro, mas elas tinham recém perdido o marido na travessia. Durante a viagem, algumas mães davam à luz sem nenhum acompanhamento médico. Outras viam os filhos morrer por causa de doenças provocadas pelas precárias condições de higiene dos navios. A viagem durava mais de um mês – isso porque a velocidade média de cruzeiro da embarcação a vapor era de 30 km/h, para percorrer uma distância de 9.500 quilômetros.
- Os imigrantes desembarcavam no Rio de Janeiro ou em São Paulo, onde ficavam de quarentena. ado esse tempo, pegavam outro barco e seguiam para o Rio Grande do Sul numa viagem de, pelo menos, 10 dias até Porto Alegre. Dias depois, seguiam em pequenas embarcações até Montenegro, São Sebastião do Caí ou Rio Pardo. Desses pontos, a viagem prosseguia a pé, em lombo de burro ou carretas, pela mata virgem. Com facão, abriam caminho e dormiam ao relento. Chegando à colônia, ficavam em barracões de madeira.
- As primeiras atividades dos imigrantes italianos na colônia não foram de plantio, mas de limpeza do mato, construção das casas e abertura dos caminhos. Só depois eles começaram as lavouras, normalmente plantando milho, por causa do fácil cultivo e rápida colheita. Das espigas vinha o principal alimento dos imigrantes, a polenta e, a palha, era usada como enchimento para os colchões. O trigo veio na sequência, porque tinha plantio e colheita intercalado com o milho, e garantia o pão e a massa. A palha do trigo servia para fazer longos metros de dressa, utilizada na fabricação de cestos e chapéus.
- O mito fundador da imigração italiana na Serra gaúcha traz uma curiosidade: de que o imigrante é recebido por um nativo, Luís Antonio Silva e Lima, conhecido por Luís Bugre. É ele quem conduz e ajuda as famílias recém chegadas a se estabelecerem e não arem fome por aqui. Um texto do bispo Dom José Baréa, escrito durante o cinquentenário da imigração, em 1925, relata que, desde a chegada ao Rio Grande do Sul no final do século 19 até o início da colheita, os italianos se alimentaram quase exclusivamente de pinhões.
- A possibilidade de encontrar, no Brasil, a cuccagna, foi idealizada pela primeira leva de imigrantes italianos. A primeira versão sobre a tal terra da abundância foi escrita há mais de 700 anos. O texto celebra a gula e as facilidades com pouco trabalho.