
A cantoria e a dança que se tornaram tradição em filós, almoços de colônia e até mesmo durante o trabalho rural contam a história de quem, há 150 anos, vinha da Itália ao Rio Grande do Sul. Relatando histórias do país europeu, da viagem ao Brasil e dos desafios vividos ao chegar aqui, a cultura foi um meio encontrado para deixar vivo o legado e a memória de gerações de imigrantes.
— O canto coral tem um aspecto marcante, que se inicia de uma forma muito espontânea, por exemplo, nos filós. Muito presentes nesses encontros familiares que aconteciam à noite, com um dos objetivos de contar também o que acontecia no seu cotidiano, de celebrar a sua própria cultura. O canto vai assumir uma função muito importante naquele ambiente, como lembrança da terra de onde eles partiram. Ele vai se desenvolver pelos primeiros imigrantes e pelos descendentes pela lembrança e também como uma forma de manter viva essa memória coletiva e essa identidade — explica o pesquisador e diretor do Instituto de Memória Histórica e Cultural da Universidade de Caxias do Sul, Anthony Beux Tessari.
A intensidade de apresentações dos grupos ao longo deste ano em que se comemoram os 150 anos de imigração não é novidade. Tessari aponta que, por volta de 1925, por exemplo, cresceu a vontade de os descendentes demonstrarem que a presença dos italianos no Brasil foi um sucesso. Na época, os 50 anos da imigração eram comemorados, e o "sentimento de italianidade ficou mais aflorado".

Mais tarde, durante o governo de Getúlio Vargas, houve uma ruptura dessa ideia ufanista. Na época, por volta dos anos de 1940, as línguas italiana, alemã e japonesa foram proibidas em locais públicos e em contextos educacionais e culturais.
A proibição fazia parte de uma política de nacionalização e de combate aos países do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, que também tinha como objetivo reforçar a identidade nacional.
— A partir do Estado Novo, de Getúlio Vargas, tivemos um rompimento, pelo menos durante um período, dessa ideia (de orgulho). Ao se proibir que se falasse o italiano, trouxe um prejuízo muito grande para essa cultura de imigração — relembra.
Pós-Estado Novo, pela retomada do orgulho de ser descendente de imigrantes italianos, de falar Talian e de pertencer à terra colonizada pelos imigrantes, os grupos folclóricos ganharam força e protagonismo no resgate da história e na construção da memória coletiva.
— A partir de 1975, a gente vê um movimento muito forte com relação à cultura. Hoje, há grupos que já pensam numa cultura de imigração italiana, propriamente. Não é só difundir ou pensar uma cultura da Itália no Brasil, mas uma cultura de imigração, que foi transformada aqui, inclusive, com contatos e com outras origens. Não é uma cultura da Itália que está preservada desde 1875 até o presente. Mas é uma cultura de imigrantes italianos, que foi recriada aqui no Brasil, até porque as origens deles eram distintas — afirma Tessari.
Legado que vem das raízes

É por meio da cultura ítalo-brasileira que grupos como o Radize D'Itália, em Caxias do Sul, buscam preservar a memória e a tradição. Entre os 17 membros do grupo, a descendência italiana é quase unânime, com exceção de uma pessoa: Cornélia Zimmermann Piamolini, que tem família de origem alemã, mas se apaixonou pela cultura italiana quando trocou o lar em Nova Petrópolis por Caxias do Sul.
— Eu vim de uma família de origem alemã, de coralistas. Depois casei e vim morar para cá. Tive que aprender o italiano no dia a dia, só falava alemão. Me convidaram para fazer parte do grupo e eu disse: "vamos, né?". Me interessei pela cultura. As músicas bonitas, que a gente já cantava na igreja. Hoje em dia, quando tem que faltar um encontro, fico balançada — afirma Cornélia.
Regidos pelo músico André Arrosi, os artistas do coro viram o número de apresentações aumentar neste ano, justamente em comemoração aos 150 anos da imigração. Com orgulho das raízes, como o próprio nome do grupo já diz: radize, a herança familiar e afetiva é o que motiva a manter viva a cultura por meio do canto coral:
— Todos os grupos de cantoria que existem em toda a região é devido a essa carga forte que a gente recebeu dos nossos anteados, da religiosidade, da música. Eles existem porque a gente trouxe uma carga de ensinamentos e até uma saudade, que ficou impregnada na gente. É uma coisa que ainda existe porque a gente tem essa vontade de expor essas coisas que a gente recebeu dos pais, avós e bisavós — orgulha-se Oscar Luiz Panozzo, um dos integrantes do grupo.
No caso do Radize D'Italia, a preservação da cultura italiana a, também, por se aproximar de públicos que não necessariamente acompanhem música italiana. Para isso, Panozzo é o responsável por adaptar composições brasileiras ao Talian. No repertório das apresentações, o grupo mescla as tradicionais La Montanara e La Campagnola, com as adaptações como Querência Amada.
— A gente trouxe as músicas italianas de uma outra forma. Procuramos resgatar a cultura, mas também trazer coisas novas. Por exemplo, tem uma versão da música Soleado, A Música do Céu, do Moacyr Franco, tem uma versão do Felicidade, do Lupícinio Rodrigues... A música acaba incentivando as pessoas a entenderem a língua, apesar da falta de prática, que hoje é um dos maiores empecilhos para o Talian — analisa Arrosi.
Essa adaptação ao repertório tem feito com que o público que prestigia as apresentações do Radize D'Italia seja mais diverso. Os integrantes observam que os jovens, por exemplo, têm frequentado mais as apresentações, cantando junto e interagindo.
— Tem um ditado italiano que a minha avó sempre dizia: Impara l'arte e mettila da parte (em tradução livre: Aprenda a arte e guarde), ou seja: tudo que tu puderes aprender em todos os sentidos, guarda. Um dia vai te servir. Então, a esperança é os jovens que estão ouvindo a gente criem coragem, entrem para grupos e continuem mantendo nossas tradições e nossas músicas. É uma coisa que está enraizada na nossa região, não tem como apagar uma história de um povo — orgulha-se Panozzo.
"O orgulho que a gente tem é muito grande"

A herança vem de sangue, pela influência da família e pelo orgulho dos anteados. Honrando a memória da imigração, o grupo Anima D'Italia se orgulha de circular por todo o Rio Grande do Sul levando a música italiana aos mais diversos públicos.
— Tempos atrás nem se pensava em cantar por ter orgulho das músicas italianas. Em função de todo aquele problema que era proibido falar os dialetos. Então, isso tudo foi deixando as pessoas sem conhecer a história. Mas hoje, graças a Deus, já tem muitos e muitos eventos que trabalham a preservação do Talian, cada vez enriquecendo mais. Os corais fazem uma grande parte de resgatar as origens através do canto — analisa um dos membros do coral, Valter Buffon.
Com 25 anos de existência, o Anima D'Italia se apresenta com sete membros e acompanhamento da gaita. A agenda se concentra quase completamente nos encontros de corais pelo interior do RS, mas neste ano, as festas em celebração dos 150 anos da imigração também integram a agenda.
O nome, que significa Alma da Itália, foi escolhido em uma votação há 26 anos, quando o grupo começou as atividades, mas conforme Buffon, ainda diz muito sobre o que o coral representa e acredita:
— Fez um sentido muito grande e continua tendo. Nesses dias, me perguntaram se temos orgulho de cantar as canções italianas. Meu Deus, é claro que a gente tem! Voltando um pouquinho na história, nós temos aqui em Ana Rech o caso dos irmãos Biondo, que foram mortos pela polícia, porque saíram da missa e como não sabiam falar uma palavra em português, quiseram fugir e a polícia acabou matando. Hoje não tem mais isso, a gente tem orgulho, sempre sentimos orgulho em ser descendentes de italianos — relembra.
Os encontros de corais dão esperança de que, cada vez mais, o orgulho da origem, da família e da língua Talian se fortaleça por meio da transmissão da cultura entre gerações.
— Hoje, graças a Deus, muitas pessoas estão levando adiante para preservar essa nossa cultura. Falando em corais, hoje, nós temos muito mais grupos do que há 20 anos. Está no sangue, não adianta. O orgulho que a gente tem por isso é muito grande, isso que dá a força para a gente levar adiante — diz Buffon.
Memória coletiva
Os grupos folclóricos trabalham na perspectiva de preservação da memória coletiva. Conforme o professor Anthony Beux, o trabalho artístico se relaciona diretamente com a tentativa de manter viva a tradição dos imigrantes italianos.
— Acho que há vários interesses em relação a isso. A gente pode pensar do ponto de vista da cultura, de dar manutenção às tradições, porque se reconhecem nela. Pela sua origem, pela origem dos seus anteados. Porque nós ainda temos esse sentimento presente em muitas comunidades. É uma forma de dar manutenção, de ar para as próximas gerações como acontece na dinâmica do patrimônio. Ir ando esses saberes, esses conhecimentos — aponta.