
Uma estimativa do Consulado-Geral da Itália em Porto Alegre aponta que aproximadamente 4 milhões de gaúchos são descendentes de italianos, o que dá a eles o direito de reconhecer a cidadania italiana. O número representa 36,7% da população do Estado — estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o RS tem 10,8 milhões de pessoas.
Esse processo, garantido pela lei 91 de 1992, pode ser feito de algumas formas diferentes. Via consulado, de forma judicial — quando há um processo contra o governo italiano —, e até mesmo indo ao país europeu. No entanto, em meio às celebrações dos 150 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, buscar esse direito que é obtido desde o nascimento, se tornou mais complexo desde o final de março.
No mês ado, o Conselho de Ministros da Itália aprovou o chamado “Pacote Cidadania”, um conjunto de medidas legislativas propostas pelo Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacional para reformar a regulamentação sobre a cidadania.
A medida restringiu as condições de naturalização por direito de sangue, limitando a obtenção da cidadania italiana a duas gerações. Após ar por comissões, o projeto deve ser votado no plenário do Senado italiano, possivelmente até 8 de maio, e depois vai ser encaminhado para a Câmara, onde precisa ser aprovado até o dia 27 de maio.
Para Vania Herédia, doutora em História das Américas, esse movimento do governo italiano é uma forma de negar o ado, uma vez que rompe com a história que se construiu ao longo desses 150 anos, baseada em uma identidade coletiva.
— Quando o Estado fornece a cidadania, ele é responsável por esse cidadão. Então, temos que ver o que está acontecendo com o Estado italiano neste momento, que tem um governo bastante voltado para a perda de direitos, para a população se dar conta do momento que o mundo está ando na questão geopolítica, não só em relação à Itália, mas à comunidade europeia.

E basta circular pelo Rio Grande do Sul, em especial na Serra, para perceber o legado deixado pelos imigrantes vindos da Itália desde 1875. Seja na identidade cultural, com o jeito de falar e os costumes, além da própria religião e a gastronomia, que fazem parte até os dias atuais. Vania, que foi professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) por 45 anos, afirma que os descendentes se sentem mais italianos do que brasileiros:
— Se tu perguntares a origem, eles (os descendentes) não vão dizer que são brasileiros, vão dizer: "sou de origem italiana". E o fato de ter essa identidade faz com que eles se sintam parte de uma história. E, neste momento, essa discussão (restrição da cidadania) abre uma fratura em relação ao ado e ao presente, é muito sério o que está acontecendo.
Vania acredita que são diversos os fatores que levam os descendentes a buscarem o reconhecimento da cidadania. Entre eles, se destaca a busca por oportunidades no país de origem dos anteados, o conhecimento cultural e um resgaste da história familiar.
As heranças de família
Foi ainda na adolescência, em 1994, que Rangel Redaelli, hoje com 46 anos, obteve a cidadania italiana, após um tio apresentar a ideia aos parentes. A família sempre manteve viva a ligação com as raízes italianas, inclusive, é uma das fundadoras de Nova Milano, berço da imigração italiana no Rio Grande do Sul e distrito de Farroupilha
Comparado aos dias atuais, o processo foi rápido. Feito via consulado em Porto Alegre, demorou cerca de um ano para conseguir a cidadania e o aporte. Diante disso, uma situação que, inicialmente, foi desconfortável: a retificação do sobrenome. Com a grafia no Brasil como “Radaelli”, descobriram e necessidade de ajustar para “Redaelli”.
Três anos após obter a cidadania, teve a primeira oportunidade de ir ao Velho Continente e ter um contato maior com a história. Inicialmente foi para Dusseldorf, na Alemanha, em uma feira com um tio. Logo na sequência, viajou à Itália.
— Percebia, o que é uma característica da Itália, uma ligação muito forte com a tradição. Nessa parte eu me senti em casa, sim, e mais do que sentir em casa, era perceber que eles tinham um nível de modernidade e desenvolvimento, e valorizam aquelas coisas que eu via na colônia. As casas de pedra, as cantinas com pão e vinho, o jeito de comer. Tu podes ter as duas coisas — descreve.
Um ano após a viagem a eio, recebeu um convite de outro tio: morar na Itália. O parente já estava vivendo no país desde os anos de 1980. No começo ficou desconfortável com a ideia, mas logo aceitou o convite. Publicitário, conseguiu um estágio em uma empresa. Fixou residência em Bréscia, por onde ficou por cinco anos. O momento é descrito por ele como “um divisor de águas na vida”, uma vez que foi na época em que ou a mergulhar na história da imigração e do legado deixado pelos italianos.
— Eu me identifiquei muito, e minhas amizades eram com italianos, eu não fiquei em uma colônia de brasileiros, e isso me ajudou muito. Eu pude perceber que lá eu podia aprender muito mais sobre isso, aí eu ei a me sentir em casa. Comecei a ver que as pessoas eram parecidas conosco.
Após voltar para Caxias, constituiu uma empresa e viajou três vezes a lazer para a Itália. Mas, na década ada, resolveu mudar a vida. ou a trabalhar como de Airbnb na cidade da Serra e em Santa Catarina. E, logo expandiu o negócio também na Itália. E, em 2023, começou a ajudar as pessoas no processo de reconhecimento da cidadania via istrativa na própria Itália. Atualmente, tem residência tanto em Caxias quanto em Pescara, e divide o seu tempo entre os dois países, sem querer perder nenhuma das raízes.
— Aqui (na Serra) ficou uma cápsula do tempo, coisas que se transformaram lá (na Itália), algumas para o lado não tão bom de perdas de questões culturais, aqui ficaram congeladas. Nós temos, por exemplo, hábitos e uma história congelada de 150 anos que lá pode ter se perdido, por mais que eles mantenham, ela vai se misturando com outras histórias.
"Tu te sentes parte”
Assim que pisou na Itália para realizar o processo de reconhecimento da cidadania italiana, há sete anos, Guilherme Scolaro Viana, 31, despertou o “jeito italiano”, como define. Um processo que foi facilitado, pois uma prima da mãe já havia reunido os documentos necessários. Assim, o caxiense precisou pagar a tradução da sua parte e aguardar o reconhecimento, processo que fez no país europeu.
O despertar para buscar o reconhecimento veio no mesmo momento em que decidiu realizar um intercâmbio para Dublin, na Irlanda. Ele optou por fazer o processo na Itália, onde morou de janeiro a março de 2018 na Comune di Ponte San Pietro, na região de Bérgamo, no norte do país.
— Em várias situações via alguém falando e lembrava dos meus parentes em Antônio Prado, por exemplo, bem pela cultura, pelo jeito que são, pelas maneiras de vida. Foi bem interessante — relembra o caxiense.
Mesmo sem ter filhos, acredita que ter o reconhecimento da cidadania é algo que poderá beneficiar os futuros descendentes. Após a experiência vivida na Itália, ou a entender mais as raízes. Ele não chegou a ter contato com possíveis parentes italianos, mas buscou entender mais sobre a imigração e os costumes locais.
— Eu não tinha ainda despertado esse jeito italiano antes de ir para lá. Depois que fui, vi algumas diferenças e semelhanças, principalmente, com cultura e tudo que liga. Tu te sentes muito parte daquilo, porque é tua origem, a tua vida começou lá, parece que desenvolve outros gostos que ainda não tinha... Por exemplo, eu não tomava vinho e sou quase um entusiasta hoje em dia, parte de culinária, eu não cozinhava muito (e hoje cozinho).
A ida ao país europeu deixou laços. Por ter morado na região de Bérgamo, adotou o azul e preto da Atalanta, time da cidade, como suas cores na Itália, e segue acompanhando a equipe até os dias de hoje.
A frustração na fila
Foi no início dos anos 2000 que a jornalista Rosângela Longhi, natural de Bento Gonçalves e hoje moradora de Caxias, teve o primeiro contato para entender como reconhecer o direito à cidadania italiana. No entanto, questões pessoais, como a mudança da serra gaúcha para Santa Catarina, e financeira, pesaram naquele momento.
Em estudos, descobriu que poderia fazer valer o direito pelo tataravô paterno, Angelo Fortunato Longhi, que chegou ao Brasil com a família em 1877.
adas quase duas décadas, entre 2017 e 2018, decidiu que era o momento certo para ingressar de vez no processo. A escolha foi por fazer via consulado em Porto Alegre. Uma grande pesquisa foi necessária, principalmente para obter documentos como a certidão de nascimento, casamento e óbito do anteado, e até mesmo dados sobre a chegada dele ao país.
Mesmo com mudanças de planos, a jornalista conta que o desejo de fazer o reconhecimento da cidadania a pelo resgate da herança familiar, além de um projeto de vida de, no futuro, ir morar com o marido na Itália. O processo via consulado é para obter a sua cidadania e dos dois sobrinhos.
No início de março de 2025, Rosângela estava feliz. Naquele momento Consulado-Geral da Itália em Porto Alegre havia anunciado a convocação das pessoas que estão na fila com as inscrições entre 16.001 e 17 mil, e o seu número é o 17.420, ou seja, estava próximo de um chamado.
No entanto, no final do mesmo mês, com a aprovação do “Pacote Cidadania”, os atendimentos no consulado em Porto Alegre foram suspensos. Há sete anos na fila, ela não esconde a tristeza com o momento:
— Muita frustração, porque eu venho acompanhando a fila do consulado desde 2018, e teve momentos em que a fila parou, deu uma murchada, agora deu uma informatizada, agilizou. Eu estava muito animada. E eu venho acompanhando esse histórico e sabia que mais cedo ou mais tarde ia ter algo, porque não é de hoje que os políticos da Itália vêm implicando com isso, e essa questão judicial prejudicou muito, sobrecarregou o judiciário de Roma, que ou um pouco para as prefeituras, todo mundo ficou indignado, e de certa forma é compreensível. Agora o jeito é esperar.