
Foi pelas mãos de um rapaz de 18 anos, Moysés Mondadori, que a música gaúcha ganhou forma num certo dia de 1914, na fábrica de discos Casa Electrica, em Porto Alegre. Ao gravar a primeira música gaúcha da história, o tema folclórico Boi Barroso, não foi por acaso nem coincidência que Mondadori, nascido em Antônio Prado e filho de italianos, empunhava o acordeon. O instrumento que viria a se tornar o símbolo da música gaúcha é uma das principais heranças da imigração italiana no Estado.
Embora os primeiros acordeons tenham chegado ao Rio Grande do Sul com imigrantes alemães, por volta de 1850, o próprio instrumento patenteado em 1829 ainda buscava sua forma definitiva, que já estava mais próxima quando desembarcaram as famílias italianas, a partir de 1875. Ao longo das décadas seguintes, a chegada em massa dos imigrantes italianos teria os acordes e as melodias tocados na gaita como sua principal trilha sonora.
- As primeiras gaitas produzidas ainda na metade do Século 19 tinham poucos recursos em relação às que conhecemos hoje. É a partir de 1900, já na Itália, que o instrumento vive seu momento de maior expansão. E, como a gente pode ver em muitas fotos da imigração italiana no Brasil, diversas famílias tinham junto com sua bagagem uma gaita. E logo se tornaram comuns os encontros onde se tocavam e dançavam as valsas e marchas _ aponta o acordeonista Israel Da Sois Sgarbi, autor do livro O Ritmo Musical do Bugiu (Escrita Serrana, 2022, 192 páginas).
Entre as razões para que tantas gaitas, como o termo se popularizou no Estado, tenham vindo na bagagem dos italianos está a de se tratar de um instrumento portátil e mais fácil de carregar do que o piano. Outra é a sua versatilidade, que permite a um único músico preencher harmonia, melodia e ritmo. Além disso, a possibilidade de produção em massa e a maior ibilidade econômica também favoreceram.

- A gaita, chegando ao Estado, revolucionou tudo. Se antes, para se fazer uma apresentação musical precisava ter a rabeca, o violino e a viola, o acordeon oferecia toda a sonoridade com muito mais recurso. E o tocador podia muito bem levar o instrumento na garupa do cavalo, numa mala de roupas ou até carregar nas costas. Sem menosprezar jamais as belas formações que já existiam, mas estávamos falando de um contexto que ainda era de escassez - acrescenta Da Sois.
A popularização do acordeon, especialmente a partir dos anos 1940, fez surgir no Estado diversas fábricas fundadas por luthiers de origem italiana, como a Veronese, de Veranópolis; Tupy, Soprano e Universal, de Caxias do Sul; a Scala, em Bento Gonçalves, além da principal entre todas, a Todeschini, também de Bento, que em seu auge chegou a fabricar 1,5 mil gaitas por mês, nos anos 1960. Embora o pavilhão que abrigava o setor de gaitas da empresa tenha sido consumido por um incêndio nos anos 1970 e a produção tenha sido encerrada, os instrumentos produzidos pela marca seguem sendo relevantes, tendo acrescido à qualidade o valor histórico que carregam.
- Eu atribuo boa parte da característica da música serrana, em especial a Música Bertussi, ao timbre muito particular das gaitas Todeschini - avalia Rafael De Boni, acordeonista caxiense e autor do livro e da websérie homônima Causos e Gaitas.
Como o jeito serrano de tocar moldou uma cultura

Bisnetos do imigrante italiano João Bertuzzo, Honeyde e Adelar Bertussi, citados por De Boni, além de músicos lendários, foram os principais garotos-propaganda da Todeschini, que deram ao instrumento uma nova dimensão, aliando uma técnica apurada à intenção mais ousada que fez surgir a chamada música gaúcha bailável. Nascidos e criados na localidade de São Jorge da Mulada, em Caxias do Sul (mas pertencente a São Francisco de Paula na época), viriam a influenciar praticamente todos os instrumentistas regionalistas que viriam depois, não só acordeonistas.
_ Toda a convergência de fatores que vai dar na música serrana se dá ali na região de Criúva, onde a família Bertussi vivia sendo já muito atuante no comércio, na construção de ponte, de usina hidrelétrica. Ali avam os tropeiros, havia presença indígena, e, claro, havia também os bugios em cima das árvores. Então, mais do que exímios músicos, Honeyde e Adelar eram a própria história daquele lugar onde nasceu a música mais genuinamente gaúcha, que é a música serrana _ completa De Boni.
Mais velho, Honeyde foi o primeiro a aprender a tocar, no fim da adolescência. Viajava 55 quilômetros a cavalo desde a Mulada até Caxias do Sul, com sua primeira gaita na garupa, uma Todeschini comprada em 1942, a fim de ter aulas com Victor De Lazzer. Anos mais tarde, Adelar também iria se aprimorar no instrumento como o primeiro aluno (e também o melhor, segundo o próprio professor se orgulhava em dizer) do italiano radicado em Caxias do Sul Eleonardo Caffi.

Mais conhecido por ser o autor da melodia e do arranjo do hino de Caxias, Caffi abriu na cidade o Conservatório Musical Rossini, onde ministrava os cursos de acordeon e de teoria e solfejo. Para André Arrosi, mais do que um dos principais mestres, Caffi, que faleceu em 2022, aos 93 anos, pode ser considerado um dos nomes seminais para a formação da música gaúcha.
_ Caffi foi o responsável por trazer para o Brasil o Método Anzaghi Per Fisarmonica, que até hoje é muito utilizado, mas que naquela época da sua chegada ao Brasil e a Caxias foi a novidade que fez toda a diferença no ensino do instrumento. Até hoje, a diferença grande que se percebe no jeito de tocar dos gaiteiros da fronteira para os gaiteiros serranos tem muito a ver com suas diferentes influências. Enquanto na fronteira a proximidade com a Argentina produziu um tipo de acordeonista, na Serra a influência italiana do Leonardo Caffi e do Método Anzaghi fez surgir este outro tipo _ ressalta o acordeonista caxiense André Arrosi, também regente do coral Radize D'Itália.

Fazendo o percurso inverso da imigração, ao longo de sua carreira como instrumentista Arrosi pôde ver de perto a importância que o acordeon segue tendo na região italiana do Vêneto, de onde partiram a maioria das famílias que vieram para o Rio Grande do Sul. O caxiense se surpreendeu, especialmente, com a curiosidade de muitos que não imaginavam que o acordeon seria o instrumento mais popular na região que seus anteados ajudaram a colonizar:
_ Em 2023, acompanhando o grupo Girotondo (de Caxias do Sul), pude ar 15 dias na região do Vêneto, visitando todas as províncias, e pude ver que o acordeon ainda é muito presente, especialmente nos grupos de cantos populares, que são bem similares aos nossos. Nós levamos daqui para lá um pouco da música brasileira, como o chorinho, além do tango argentino, e eles ficaram impressionados.
Coleção de mais de 300 gaitas irá virar museu

Caxiense radicado em Brasília, onde trabalha como servidor federal, Jean-Pierre Bianchi adquiriu um acervo com mais de 300 instrumentos de fole que pertenciam a Wendelino Kinzel, morador de Picada Café, atualmente com 88 anos. Mais do que garantir a preservação da coleção, Jean-Charles planeja a abertura do Museu do Acordeon, que, embora ainda não tenha uma sede física, já tem um Instagram e YouTube (@museuwk) próprio com bastante conteúdo, inclusive entrevistas com antigos afinadores.
- Não será um museu de acordeonistas, mas sim do acordeon, que terá como objetivo principal contar a história de pessoas que se dedicaram à fabricação, ao conserto, afinação, mas que raramente são reconhecidas ou valorizadas. É uma parte muito apagada do legado cultural, em especial da nossa região (da Serra) que tem a maior tradição neste segmento, mas que mal são citados nos registros históricos que conhecemos - diz.
Agregando ao acervo de Kinzel sua própria coleção, o objetivo de Jean-Pierre é reunir e expor no futuro museu pelo menos um exemplar de cada marca de gaita fabricada no Brasil, podendo apresentar ao visitante diferentes formatos e também variações, como o bandoneon, a concertina. Embora a coleção esteja abrigada atualmente em Caxias, Jean-Pierre estuda como possibilidades abrir o museu em Bento, aliando potencial turístico à tradição, ou na Região das Hortênsias, por ser o principal destino de brasileiros que visitam o Estado.