Como o cacique controla o trabalho na tribo

A maioria dos professores e agentes de saúde chegam ao cargo mediante contratações emergenciais dos municípios ou do Estado, que am pelo crivo dos políticos da região. Os concursados são minoria. Cabe ao cacique deixar ou não que alguém trabalhe na área indígena. O cacique exigiria, muitas vezes, pagamento para que o professor ou agente de saúde permaneça lá — a rachadinha do salário, uma prática ilegal, seria copiada dos políticos.

Índios indicados para serviços privados fora da área da reserva estão acostumados a retribuir o favor com presentes ao cacique, em dinheiro. Essas práticas estão relatadas em inquéritos criminais abertos e também são analisadas na dissertação de mestrado Escola Indígena e Ensino de História: um estudo em uma escola kaingang da terra indígena Guarita/RS, de Juliana Schneider Medeiros, mestre em Educação pela UFRGS.

Em dezembro de 2018, a Comissão Eleitoral Permanente da Reserva da Guarita apontou a existência de extorsão e ameaça aos agricultores parceiros que cultivam as terras junto aos indígenas, além de constrangimento moral de funcionários públicos, no primeiro ano do cacicado de Carlinhos Alfaiate (que assumiu em janeiro de 2018). A maioria dos índios decidiu pela permanência dele no cargo.

Cacique dá sua versão: "Esse pessoal está armado"

TADEU VILANI / AGENCIA RBS
Carlinhos Alfaiate, sentado à direita, acompanhado do seu "oficialato" informal

Os Alfaiate são linhagem tradicional dentre os caingangues da Guarita. Carlinhos é filho de um cacique, Sebastião, e já foi cacique nos anos 1990, antes de vencer o último pleito para o cargo. Chegou ao poder quando o antigo chefe dos índios foi preso por envolvimento em assalto a banco. A eleição uniu duas famílias conhecidas da aldeia, os Alfaiate e os Ribeiro (sobrenome do atual vice, Vanderlei).

Pois Carlinhos Alfaiate dormiu no mato no último sábado (25), não pelo contato com a natureza, mas para fugir da morte. Pistoleiros o procuraram em casa, no distrito de Bananeira. Teriam antes monitorado o local com um drone. Chegaram com escopetas, pistolas, revólveres e até fuzil, atirando. Após perfurarem toda a residência com disparos, jogaram coquetéis molotov, que incendiaram o imóvel de cima a baixo.

O cacique fugiu, sua mulher ficou e foi interrogada pelos criminosos. Alguns estavam sem capuz e foram reconhecidos, inclusive por outras testemunhas. Conforme as investigações da Polícia Civil, seriam integrantes do grupo de apoio ao vice-cacique Vandinho Ribeiro.

TADEU VILANI / AGENCIA RBS
A casa de Carlinhos Alfaiate, que foi incendiada em Tenente Portela

Alfaiate permaneceu a noite escondido na floresta até buscar ajuda. Não esperava o ataque e ficou abalado. Dois dias depois, concordou em receber GaúchaZH. De camisa social vermelha, calça de tergal, tem fala calma e ponderada como se fosse um pastor. Talvez por influência dos evangélicos, que formam grande parte dos seus oficiais — os caingangues têm sociedade militarizada e as lideranças abaixo do cacique se intitulam coronel, major, capitão.

O oficialato informal de Alfaiate lotou a sala da entrevista e palpitou o tempo inteiro. Alguns carregavam bordunas. Formam um grupo mais tradicional e com mais idade do que os comandados pelo grupo oposto, os jovens liderados de Vandinho Ribeiro. Vestem trajes do meio rural, chapéus de gaúcho, bonés de tratorista. Um "coronel" pontua as falas com agens da Bíblia. Eles garantem que não portam armas e se mostram muito preocupados com o arsenal bélico que, asseguram, os rivais têm.

— Esse pessoal que me ataca quer traficar à vontade na reserva, mas não vamos deixar. Eles estão armados, mas nós temos Deus e a lei do nosso lado — recita Alfaiate.

Arsenal da Capital

TADEU VILANI / AGENCIA RBS
Cápsula de revólver encontrada nas ruínas da casa de Carlinhos Alfaiate

O cacique atribui o ataque à ideia de um grupo de caingangues que estava radicado em Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro, e teria voltado para a Guarita para tentar o poder. Acabaram se aliando a Vandinho Ribeiro. Ribeiro ite esse apoio, só nega que os que retornaram estejam armados.

— Nunca tivemos fuzil e drone aqui. É coisa dos recém-chegados. Eles querem tomar o poder na guerra. Por que as autoridades não tomam providência? Fui legitimamente eleito — questiona Alfaiate.

Dois vereadores indígenas participam da reunião. Alguns dos "capitães" estão indóceis, revoltados, falam que o ataque não pode ficar sem resposta. Alfaiate recomenda calma.

— A gente firmou acordo de não agressão, ficamos de responder aos pedidos do Vandinho em 15 dias. Antes de o prazo terminar, sofremos o ataque. Queremos paz, mas isso não pode continuar. Os criminosos têm de ser presos — desabafa Alfaiate.

Sobre arrendamentos, o cacique não fala, diz que são intrigas e que seus adversários devem provar o que alegam. Alfaiate concorda que um dos motivos da rixa é o poder sobre indicações para cargos, mas nega achaques. Ele ite que existe uma cadeia na reserva, na qual são colocados desordeiros. Feita para bêbados, assediadores, "mas jamais para os rivais políticos", assegura. Sobre espancamentos, ele também não comenta, mas lembra que as punições dos índios são diferentes das dos não-índios, costumam ser proporcionais ao delito. 

 Ainda não é ? Assine GaúchaZH e tenha o ilimitado ao site, aplicativos e jornal digital. Conteúdo de qualidade na palma da sua mão. 

GZH faz parte do The Trust Project
Saiba Mais

RBS BRAND STUDIO