Configura-se o transtorno se os sintomas trazem prejuízos no trabalho, nas relações sociais ou na educação. A fronteira, entretanto, é muitas vezes subjetiva, o que pode estar relacionado a uma percepção do aumento de diagnósticos.
O conceito de "espectro" para falar de autismo surgiu a partir de uma identificação dos pais de pacientes, explica o psiquiatra Eugênio Grevet, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Ambulatório de Transtornos de Déficit de Atenção e do Neurodesenvolvimento em Adultos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HA).
Fora desses níveis, há o chamado fenótipo autista expandido: pessoas que têm algumas características, como rejeição à interação social ou maior introversão, mas sem um problema funcional.
Muitas vezes, a suspeita de diagnóstico não se confirma, segundo Wyllians Borelli, neurologista e coordenador de pesquisa do Centro da Memória do Hospital Moinhos de Vento (HMV). Trata-se de um traço ou sintoma leve, que não se enquadra no transtorno.
Os sinais e sintomas se manifestam de maneira relativamente distinta nos adultos. Em geral, o adulto costuma receber o diagnóstico de nível 1 de e (em termos leigos, "leve"), já que níveis mais perceptíveis levam a um diagnóstico mais precoce durante a vida.
— É muito difícil ter um autista não verbal (que não fala) que chega aos seus 20 ou 30 anos sem diagnóstico — exemplifica Borelli.
Alguns podem ser funcionais no colégio e, ao chegar ao mercado de trabalho, enfrentar dificuldades. Os sintomas também podem se manifestar como dificuldades ou falta de interesse em ter relacionamentos.
Um grupo importante desses adultos que se descobrem tardiamente consegue lidar ou esconder seus sintomas, como rir de uma piada que não compreendeu. É o que observa Grevet, da UFRGS e do HA:
— Hoje, tem muitas pessoas, principalmente do nível 1 ou na fronteira do diagnóstico, que estão começando a se ver como autistas. am a entender o que é e tratam mais profundamente os sintomas sem ter de fazer tanta força para funcionar socialmente.
Por esses motivos, muitas vezes, o tratamento não consiste em prescrever medicações. O foco está em tratar os sintomas e auxiliar o paciente, por meio de abordagens terapêuticas, a conviver melhor com as características do transtorno, a agir e a compreender seus limites.
Se houver características associadas, como grande impulsividade, depressão ou ansiedade, os médicos podem prescrever remédios.
O tratamento pode ajudar o paciente a se sentir mais em paz, além de buscar uma profissão em que se sinta confortável. Para adultos, pode ajudar a compreender a inflexibilidade e as dificuldades, ressignificar o ado e perdoar, já que se trata de uma característica genética.
A psicóloga especialista em autismo e neurodivergências Lara Rodrigues, ela mesma uma autista, destaca o aumento notável de adultos que se identificam com traços do TEA e buscam diagnóstico ou tratamento.
— Às vezes, o que vem primeiro no relato são essas inadequações sociais, essas dificuldades de entender o mundo, de achar que é diferente demais. Elas identificam mais porque recebem muitos s sociais nesse sentido em relacionamentos e no trabalho. Aí, têm crise, não sabem o que é, somem do trabalho e são demitidos — pontua.
Lara ressalta o crescente número de mulheres adultas em busca do diagnóstico — as quais, muitas vezes, tiveram suas situações negligenciadas ou mal interpretadas ao longo da vida. O movimento é influenciado por uma revisão da prevalência de gênero no transtorno.
O diagnóstico foi o diferencial na vida de Marina. A partir dele, a revisora pôde descobrir como identificar e resolver problemas do dia a dia.
A tradutora consegue mascarar algumas de suas características para o convívio social, mas questiona: a que custo? Em muitos casos, físico e mental, diz ela.
Após interações que demandam muito, Marina adoece. Mesmo assim, adora ir a shows, festas, cinema e curtir a vida. A revisora pesa esses custos. No último show a que foi, desmaiou duas vezes e ficou de cama quatro dias após o evento, que exigiu muito da parte sensorial, mas afirma ter valido a pena.
— Me perguntam: "Por que você vai (ao show) se vai ar por isso?”. Não é justo que eu não possa vivenciar as coisas boas da vida — afirma Marina, que também descobriu superdotação, principalmente na área de comunicação e linguagem, e diagnósticos de epilepsia e bipolaridade.
Para lidar com as situações, Marina faz terapia cognitivo-comportamental (TCC) e utiliza diferentes estratégias, muitas das quais a acompanham no dia a dia, em sua bolsa, como brinquedos antiestresse e inquietação (stim toys), um leque (devido aos problemas de regulação de temperatura), óculos de sol (para a luminosidade) e remédios.
A revisora, que trabalha em casa, também estabeleceu uma rotina tranquila, com recursos visuais como listas na parede para não esquecer tarefas básicas, como levar o cachorro para ear.
— O autismo é uma desgraça para algumas coisas, porque nos faz sofrer muito, mas tem suas bênçãos. Sei que sinto e vejo coisas com mais intensidade do que as pessoas. Me perguntaram: "Se tivesse uma cura, você tomaria?". Acho que não, porque eu perderia algumas coisas também — afirma, destacando a contribuição de diferentes formas de pensamentos para a sociedade.
A indicação, no caso de suspeita, é realizar uma avaliação com um psiquiatra ou neurologista. O diagnóstico é complexo e é importante informar ao médico a suspeita de TEA. Os profissionais também costumam solicitar uma avaliação neuropsicológica para entender se há outros transtornos associados. A abordagem é multidisciplinar e envolve exercícios físicos.
A psicóloga Lara Rodrigues recomenda acompanhamento com profissionais especializados em neurodivergências, com uma perspectiva anticapacitista, independentemente da abordagem teórica da terapia psicológica, como ABA ou TCC. Ela reconhece, porém, que o o é, muitas vezes, escasso.
Pessoas autistas têm maior propensão a apresentar diagnósticos concomitantes, como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), transtornos do humor, de ansiedade, depressivos, bipolaridade e, em alguns casos, estados psicóticos.
Por vezes, ao buscar um diagnóstico, há confusão com quadros como depressão, bipolaridade e ansiedade. Também há situações de diagnósticos prévios, como fobia social ou borderline, que am a ser questionados à luz de uma compreensão mais atual do autismo. Grevet aponta:
— Muitas vezes, esses pacientes são vistos pela perspectiva do psiquiatra de adulto, que procura sempre um transtorno de ansiedade, bipolaridade, depressão, psicose. E se encontra, porque eles têm muito isso. Mas, de fundo, tem essa característica que vem desde o nascimento, que é o TEA.
Em algumas situações, o transtorno é percebido como uma característica de personalidade. O professor atribui esse cenário a uma falha histórica de diagnóstico, mas acredita que a situação, agora, deve mudar, considerando que as pessoas estão mais atentas ao assunto.
Mesmo em meio a uma maior identificação da sociedade com o tema, ainda não há e para tratar e amparar adequadamente as pessoas que recebem o diagnóstico tardio, na avaliação dos especialistas. Lara aponta que o cenário de uma inclusão real ainda está distante.
Na avaliação de Grevet, grande parte da população depende do Sistema Único de Saúde (SUS) e precisa ser encaminhada a um especialista, o que atrasa o diagnóstico.
Borelli destaca que o cenário é diferente para quem tem convênio médico ou o à rede privada; porém, tampouco é fácil á-la:
— É difícil porque os planos não cobrem inicialmente, precisa um esforço para conseguir o e multidisciplinar.
Para o médico do HMV, falta muito para fornecer o e, inclusive diagnóstico, que as pessoas com autismo necessitam.