Nossa vida é esburacada. A arte preenche muitos desses buracos. Ultimamente, estou gostando de dizer: ‘Não vou preencher, não. Quero só sentir. Deixa eu ver o que vem de bom e de ruim, deixa eu vasculhar esse ruim, senti-lo também. E depois ir para a terapia, tentar entender, elaborar’. Quero me conhecer melhor.
Você narra inclusive as dificuldades, como adolescente, de se encaixar nos padrões da televisão – o que o levou às dublagens, para só depois voltar para a TV. Como foi esse processo?
Não posso falar muito para não tirar o prazer de quem vai ler o livro. Foi dificílima essa volta. Achei que nem era capaz, porque foi um trauma tão grande ter sido escanteado que eu achava que não era capaz. Lembro da novela que ei ao voltar, com 18, 19 anos, lembro de chorar com os meus pais, falando, mesmo ando no teste: “Eu não vou aceitar, porque eu acho que eu não sei fazer”. Foi doloroso, mas também foi um momento em que eu aprendi muito. Aprendi, inclusive, que podemos ser escanteados. A partir dali, desenvolvi uma carcaça e um entendimento grande sobre os fracassos e os sucessos. Cresci sabendo não me iludir com o sucesso, nem me achar o pior do mundo com o fracasso.
Como artista, você já fez de tudo. O que ainda pretende fazer?
Realizei muitos sonhos, mas restam outros. Os maiores sonhos têm a ver com a vida pessoal, morar em um lugar diferente, ar um período em um lugar que não conheço. ei um tempo grande no Sul fazendo O Filme da Minha Vida, meu último longa-metragem. Rodei na região de Bento Gonçalves. Lindo lugar, lindo livro do (Antonio) Skármeta, que inspirou o filme. E com o Vicent Cassel, que é um baita de um ator e que topou fazer este filme. Até então, é o único filme dele em português. Chique! Fui muito feliz aí. Minhas primeiras lembranças do desejo de fazer cinema foram no Festival de Gramado, que eu acompanhava in loco nos anos 1990, como convidado. Nem fazia cinema, mas ficava olhando aquela gente, os filmes e, caramba, eu queria fazer parte daquilo. Na época, eu só fazia televisão. Então, tenho uma ligação com o Sul. Pretendo voltar.
Em 2023, você protagonizou o audiodrama França e o Labirinto, um enorme sucesso no Spotify, além de finalizar e lançar o livro. Em 2024, chega O Auto da Compadecida 2, além de outros projetos. como você vê o momento atual da sua carreira?
Estou fazendo um monte de coisas, mesmo. França e o Labirinto foi sensacional. Tudo que tem a voz me interessa, porque me lembra o período da dublagem. Em 2024, além de O Auto da Compadecida 2, tem dois outros grandes filmes: Ainda Estou Aqui, que marca o retorno do (diretor) Walter Salles ao Brasil, para realizar seu primeiro longa em português depois de muitos anos, e também um filme que eu amo, que entra naquela categoria “filmes peculiares que o Selton sempre faz”, tipo O Cheiro do Ralo, A Erva do Rato. Chama-se Enterre Seus Mortos, um filmaço dirigido pelo Marco Dutra. É um filme de terror, e eu nunca tinha feito esse gênero. Pois adorei. Fiz muitas outras coisas que ainda vão estrear, mas, a partir de agora, pretendo não fazer mais tanto. A não ser que o Globoplay me dê o sinal verde para fazer a sexta temporada de Sessão de Terapia, que já está escrita e a gente só não começou porque eles ainda não liberaram o dinheiro para filmar.
Fiz muitas outras coisas que ainda vão estrear, mas, a partir de agora, pretendo não fazer mais tanto.
Você tem em Chicó um dos personagens mais famosos de sua carreira. Como foi voltar a ele? O que esperar de O Auto da Compadecida 2?
Sem dúvida, o Chicó é uma entidade. Tanto que foi fácil voltar para ele. Deu medo, tive um monte de pensamentos antes: “Ai meu Deus, melhor não, cancela!”. Mas, na hora, coloquei uma roupa e fiz. Sem esforço. Parece que o Chicó existe, sou só um veículo para ele surgir. É impressionante a força desse personagem. Eu e Matheus (Nachtergaele), a gente nunca havia trabalhado juntos e foi lá fazer João Grilo e Chicó, que são heróis nacionais. O Auto da Compadecida 2 é fabuloso. O público vai adorar.
Por que você recusou um convite para participar de Além da Escuridão: Star Trek (2013)? Muitos artistas adorariam ter esta oportunidade, mesmo em um papel pequeno, afinal, é Hollywood...
(Risos.) Boa memória, a sua. Esqueci de colocar isso no livro, inclusive. Pediram um teste, eu fiz, falaram que adoraram e disseram: “Vem”. Mas eu falei: “Para fazer o quê?”. Aí eles: “A gente não pode dizer. É segredo”. E eu: “Mas como assim?”. Eles: “Não podemos falar. Você tem que vir, fica 30 dias em um estúdio e a gente vai escrevendo aqui, te conhecendo, improvisando”. Só que eu já tinha uma carreira linda, não falava bem o inglês... Hoje já falo melhor, mas, na época, eu não me garantia para começar a improvisar a ponto de chamar a atenção dos roteiristas para eles falarem: “Nossa, ele está inventando coisas maravilhosas, vamos colocar no filme”. Então, me deu medo de me jogar em uma aventura e ficar lá em um canto, assim, meio figurante, sabe? Não sei, o que eu tenho aqui no Brasil é tão poderoso que eu quero fazer coisas fora, quero atuar em inglês, em espanhol, mas só se for algo relevante, como o que faço aqui. Quero o que me faça sentido.
Com 50 anos, você já tem uma carreira mais extensa que alguns artistas de 70. É por isso que vai pisar no freio?
(Risos) É verdade. Eu piso no freio, solto, aí piso de novo. Assim vou indo. Acho que é por isso que já tenho uma biografia com 50 anos.