De manhã ainda penso: "Que não tenha sido verdade". Agora logo cai a ficha. Hoje penso assim: graças a Deus que tive ela por 18 anos. Ainda bem que conheci ela, que fui mãe dela.
Mãe de Thanise
Carina é uma entre dezenas, talvez centenas, de familiares e amigos que resolveram homenagear os 242 mortos da maior tragédia do Rio Grande do Sul, ainda impune, com uma marca eterna na pele. Há mães, pais, irmãos, primos, amigos e sobreviventes que exibem nomes, frases e rostos gravados pelo corpo. Orgulham-se dos laços que tinham com quem partiu, lamentam o pouco tempo compartilhado, realizam o desejo de quem morreu. Nesta reportagem, além de Carina, outras sete pessoas contam a história de suas tatuagens: Núria, viúva de Luiz Carlos; Juliana, prima de Flávia; Matias e Kellen, sobreviventes que perderam amigos; Vera Lúcia, irmã de Marcos; Ogier, pai de Vinícius; e Maristela, mãe de Michele e Clarissa.
Thanise foi um imprevisto na vida da mãe, que engravidou aos 15 anos. Com um ano e meio, "já falava tudo". Apaixonada pelos livros do bruxinho Harry Potter, a menina questionadora mais tarde se encantaria também por Karl Marx e política e decidiria cursar Filosofia no Centro Universitário Franciscano (Unifra), sonhando ser professora. Adorava que a mãe a acompanhasse até a porta da sala de aula para apresentá-la a seus colegas e professores. As duas saíam juntas à noite, eram confidentes, gostavam de música – Thanise tinha a capa do disco Help, dos Beatles, tatuada nas costas. Por conta dos penetrantes olhos negros da adolescente, Carina lhe deu os apelidos de Di e Dime, em referência a Dime Luna, da banda mexicana Maná, que entoa: "Dime luna / ¿Por qué me miras siempre así?" (Diga-me, lua, por que me olhas sempre assim?). Não eram necessárias palavras para a mãe adivinhar o que a menina queria ou o que não ia bem.
– Ela era muito minha – define.
Um ano depois do primeiro registro a tinta, Carina foi a outro tatuador para um toque mais delicado: os escritos foram cercados de flores coloridas. A quem pergunta o significado do que carrega nas costas, ela diz se tratar de uma homenagem. "Quem é Thanise?" "Por que o verão acabou?" Não é a todos que dá a explicação completa. A mãe sente o infortúnio com a intensidade de um episódio ocorrido na véspera, mas, quando a questionam sobre quantos filhos tem, a resposta explicita os cinco anos decorridos – para ela, Di não parou de aniversariar.
– Tenho duas: uma de 18 e uma de 23.
A auxiliar em nutrição segue com acompanhamento psiquiátrico, tomando quatro medicamentos. Teve alta das sessões de terapia quando finalmente compreendeu que a filha havia morrido e não voltaria mais – o que levou penosos quatro anos. As primeiras semanas após o incêndio foram insanas: no cemitério, Carina tentou arrombar o túmulo de Thanise, batendo com pedras e até com as próprias mãos. Os meses corriam, a mãe já estava em plena atividade junto à Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), clamando por justiça, e ainda esperava Thanise voltar da faculdade à noite, no portão da frente, ou tinha a certeza, na hora de dormir, de que, ao despertar no dia seguinte, a menina estaria ali outra vez.
– Para, isso está te torturando, está acabando contigo. Você viu as coisas acontecerem, você viu ela dentro do caixão – as pessoas argumentavam.
– Não, ela vai voltar.
Indago se ela temeu, em algum momento, estar enlouquecendo.
– Não. Eu só achei que amava demais e que aquilo não podia terminar assim.
Ainda há pesadelos recorrentes: a mãe se vê tentando abrir o esquife da filha ou entrando na boate para arrastar o corpo da garota para dentro do quarto. Certa vez, um sonho serenou seu coração: deitada, Carina viu Thanise, estendeu o braço e pediu que a menina deitasse a seu lado. Acariciou a filha, mexeu em seus cabelos. Ao acordar, relata ter sentido um peso no braço e divisado, no lençol amarrotado, os contornos de alguém que havia estado ali. Lamentou se tratar apenas de um sonho quando recuperou a plena consciência.
– Mas me fez bem por ela dormir comigo de novo. De manhã ainda penso: "Que isso seja um sonho, que não tenha sido verdade". Agora logo cai a ficha, antes não. Hoje penso assim: graças a Deus que tive ela por 18 anos. Ainda bem que conheci ela, que fui mãe dela.
Carina conta não ter mais condições de planejar a longo prazo. Ocupa-se das coisas da casa, da caçula (o nome de Camilly está grafado no braço direito), quer retomar a participação na agenda da AVTSM.
– Você não pode voltar a fazer planos depois que perde do jeito que perdi. Ainda tenho dias muito ruins, de ficar deitada o dia todo. Você não vê o dia de amanhã.
Afastada do trabalho por depressão, síndrome do pânico e estresse pós-traumático desde a morte da filha, Carina tem retorno programado ao emprego para o dia 26 de junho, aniversário de Thanise.
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