Filmes e séries sobre o universo do cangaço têm uma vasta tradição nas narrativas audiovisuais brasileiras. O primeiro filme brasileiro premiado no mais importante festival de cinema do mundo, o Festival de Cannes, é de 1953, O Cangaceiro, com direção de Lima Barreto. O público do Brasil e do mundo sempre teve interesse nas aventuras do cangaço. Acredito que esta nova onda segue a tradição e a renova, com diferentes olhares sobre a temática. Guerreiros do Sol é uma novela livremente inspirada em fatos reais, mas ela não é biografia de nenhum personagem real. Fizemos uma opção de criar uma história de ficção para termos mais liberdade para fabular. Há um pouco de Lampião, assim como há também de Corisco (o alagoano Cristino Gomes da Silva Cleto, 1907-1940) e outros cangaceiros na figura de Josué.
A atriz Isadora Cruz comentou que, na época das gravações, ouviu de algumas pessoas que Lampião era um herói; já outros nem queriam falar nele. Como vocês veem a dualidade de Lampião?
Os cangaceiros foram cidadãos que viveram como foras da lei. O banditismo no Nordeste nos anos 20 e 30 do século ado é fruto de uma ausência do Estado nos grotões do Brasil, onde está localizado o Sertão. Naquela região, à época, a lei não era a escrita no Código Penal, era a lei do mais forte. Do ponto de vista da dramaturgia, a geografia humana do cangaço é muito rica em tramas e fascinantemente repleta de peripécias. Guerreiros do Sol é uma história de amor, uma história de fraternidade entre irmãos e também uma história de mulheres fortes, que lutam para não serem subjugadas. Tudo isso é cangaço, um fenômeno que em todo o mundo só existiu no sertão nordestino, durante uma certa época. O cangaço é o nosso faroeste.
Gostaria que você falasse sobre as personagens femininas, que trazem luz e contemporaneidade a um ambiente e um período marcados pelo machismo e pela violência. Rosa é a protagonista, Jânia (papel da paulista Alinne Moraes) levanta a bandeira do voto feminino e ensina Otília a ler, Valiana (a carioca Nathalia Dill) vive um drama pessoal ao descobrir um câncer de mama, doença que era pouco conhecida na época.
Rosa é a narradora de Guerreiros do Sol. Ela tem um olhar diferente e, às vezes, crítico, sobre aquele mundo de homens áridos. Jânia rompe com a opressão de um casamento abusivo e quer que as mulheres se emancipem pelo voto, numa época que mulher era proibida de votar. Otília, ao se alfabetizar, amplia o olhar sobre o mundo. Valiana, rejeitada pelo marido, encontra na sororidade a força para se curar de uma doença que, à época, acreditava-se que fosse contagiosa. Todas essas mulheres têm fome de horizonte. Quando decididos fazer a novela Guerreiros do Sol, queríamos tratar de temas relevantes de hoje, que já estavam latentes no ado.
Que paralelos podem ser traçados entre o contexto sociopolítico daquela época e o atual?
Decidimos falar do cangaço hoje porque muito das contradições do Brasil de ontem ainda seguem presente no país de agora. O confronto entre o arcaico e o moderno ainda é forte no país. Se voltarmos ao início do século 20, podemos relembrar: Lampião ganhou a patente de Capitão do Exército Brasileiro, depois de ter sido chamado para combater a Coluna Prestes, por um deputado federal, que fez a ponte para chegar ao cangaceiro, convidando Padre Cícero para convocá-lo. Veja que situação tão atual. O Estado (deputado federal) convoca um bandido (Lampião e seu bando), por intermédio da igreja (Padre Cícero), para combater os comunistas (Coluna Prestes). No Brasil, em tempos de milícias e religiosos tomando posições políticas, o ado poderia se ar no presente.
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